Angústia Pandêmica Generalizada

Autora: Kelly M.

Escrevo textos acadêmicos como doutoranda no PPGHIS/UFPR e outras aleatoriedades no falemais.medium.com

Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal. Mateus 6:34

Basta a cada dia o seu mal…” Ouço essa frase dita por minha mãe desde muito cedo. Eu, sempre ansiosa e reclamona, cresci me policiando pra não demonstrar essa ansiedade pois qualquer manifestação era seguida de um mini-sermão com essa pérola bíblica.

A verdade é que a frase tem lá seu valor. Na terapia, ouço que a certeza é uma ilusão, portanto, de nada adianta sofrer pelo que não posso controlar; e que não preciso dar conta de tudo, preciso dizer não, fazer o que posso, e vida que segue. Não antecipar o sofrimento é, em outras palavras, “basta a cada dia o seu mal”. Ajuda a dar aquela parada, respirar e pensar que não vai ser hoje que vai se resolver, então, relaxa.

Eis que me deparo com um momento pandêmico que não aceita essa estratégia. Não é mais um boleto a vencer, prazos a cumprir, conversas a terminar. É uma crise sanitária mundial que impõe uma série de novas regras e hábitos como forma de sobrevivência. É surreal e bizarro. Passados mais de 100 dias de um isolamento voluntário, não tem data para sair. Os números já não causam o impacto inicial, e ainda não estamos no pico por aqui. Sabemos dos países que começam a abertura gradual e o retorno das atividades, porém, alguma coisa certa eles fizeram enquanto convivemos com um ciclo de incertezas, uma disputa de narrativas, um constante fecha/não fecha, pode/não pode. Normalizamos as mortes, naturalizamos a tragédia, generalizamos a angústia.

No livro A Peste (1947), de A. Camus, que narra os efeitos de uma epidemia na cidade de Oran, ele menciona uma angústia coletiva, quando destinos individuais deram lugar à uma história coletiva formada pela própria peste e os sentimentos compartilhados por todos.

A angústia reflete, em grande parte, esse mal que não cabe apenas em um dia. Antes, cada dia trazia o seu próprio mal, agora é um “mal” que assola todos os nossos dias. E eles se acumulam, forçando a mudança de planos, estabelecendo uma outra relação com o tempo e o espaço habitados, com as pessoas; deslocando a expectativa de futuro — motor de grande parte de nossas ações. Como escreveu Camus,

“Sabíamos, então, que a nossa separação estava destinada a durar e que devíamos tentar entender-nos com o tempo. A partir de então, reintegrávamo-nos, afinal, à nossa condição de prisioneiros, estávamos reduzidos ao nosso passado e, ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo renunciava, ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam.” p. 71

O hoje está insuportável, o amanhã incerto e distante, assim como os habitantes de Oran nos apegamos então ao passado. Vem a nostalgia. Pergunto sobre meus avós, revejo fotografias, refaço contatos perdidos. Penso nas crianças da família e me sinto mais velha. Me apego à memórias afetivas que trazem alento nesse momento, como lembranças de viagens, encontros de família, cheiro de comida da mãe, a risada dos meus irmãos, as festas com os amigos. Mas o presente chama de volta. Na tv ou nas redes sociais a realidade me encontra. Números de mortes, achatamento da curva, média móvel, cloroquina, decreto pra fechar, reportagem sobre bares cheios, trabalhador que não pode ficar em casa… “Basta a cada dia o seu mal”?? como?? Se amanhã tudo isso se repete?

Sou violentamente arrancada do conforto das memórias, da certeza do passado, para um presente dolorido. Vou dormir desejando que o dia seguinte seja diferente. Acordo e tenho mais do mesmo. Pego uma planta, cuido, vejo crescendo. E a pandemia continua. Compro livro, leio o livro, resenho, e a porta continua fechada. Escolho um móvel, monto e uso, e a rua continua interditada. Vejo vídeo de receita, aprendo e cozinho. E os abraços não chegam. Estudo, assisto aula, participo. E a angústia pesando no peito.

“A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes.” p. 170

São esses instantes que dão um respiro, uma brecha, uma fissura no tempo presente, um placebo para essa angústia pandêmica generalizada. Casa, planta, livro, aula, trabalho. É o que ainda lembra o tal “normal”, e avisa que esse mal há de passar, assim como passou em Oran. Me apego então aos instantes. E não solto mais.

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CAMUS. A peste. Record: Rio de Janeiro, 2017. Tradução: Valerie Rumjanek.

Postado por Vilma

dez 3, 2020 ,

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