*frase contida no documentário Coronation
Diagnosticada com fibromialgia durante a explosão do vírus da COVID-19 em nosso doido (doído?) mundo, redesenho meu corpo e quem sou eu nele. Essa síndrome, que é mais um dentre os males que acometem majoritariamente mulheres, me faz companhia neste longo período de quarentena. Sou lançada ao submundo das dores na bruta e frágil carne. Dores que fazem a carne tremer, formigar, contrair, queimar. Não há trilha de volta para casa. Os calçados ficam pesados; os pés, cansados; os dias, prensados, em céus enfumaçados. Sintomas se acumulam, prolongando a sensação de aprisionamento. A crise que paralisa.
O mundo e suas gentes estamos doentes. A humanidade apartada de si, convertida em perita em dores. Corpos em cárcere de si. Em ruínas e feridas internas, nossos corpos são casas de dores. Muitas vidas em avalanche, regadas com traumas e lutos. Assim ainda é. Águas de desespero e horror a esse desgoverno. Pontos de interrogação no porvir. Qual sustento imaginativo haverá aqui & agora, na espera imperfeita pelo fim dos rodopios pandêmicos?
Na condição de mulher branca, classe média, com formação universitária, empregada, hetero, cis e sem filhes para cuidar, não estou no front da pandemia nem sofro as maiores consequências dela. Por isso, arrisco dizer que, no meu caso em particular, este momento também carrega certa magia. Para além de um punhado de dolorosa agonia, tenho a chance única de me reaproximar de minhas irmãs, corpo a corpo, cotidianamente, depois de tantos anos caminhando por trilhas entrecortadas. Miscelânea entre passado e presente de cada uma de nós.
Desabadas as metas deste ano errático de 2020, estar com minhas queridas neste período de isolamento me permite tomar fôlego. Reforça meu pensamento de que já percorremos juntas a lama, e que nada mais se compara àquela perda, quando perdemos a pessoa que mais amávamos na vida. Outras nítidas lembranças chegam a mim, de tempos mais recentes, como o abraço tríplice que nos demos na entrada do metrô agitado. Doído, antecipou uma partida rumo a tremores em florestas sinápticas. Recordo também daquele outro abraço, já no reencontro em terras distantes, anunciando o calor em nossas úmidas travessias. Abraçamentos que suspenderam o tempo e fizeram tudo girar à nossa volta.
Agora um novo ponto de partida. Entrelugares do presente dão passagem a novas seivas, assentando as cicatrizes da vida. Mexemos o solo e plantamos readaptações. As dores não são translúcidas, mas elas haverão de sangrar e levantar pontes para os corpos desabrocharem em flores. Flores do tempo cíclico acendem dos socos e sopros da Mãe Terra. A árvore primavera é o retrato de nossa Mãe. Sua cor nos reaviva, une fragmentos e memórias, provoca sentimentos. Recomeçar em giros caleidoscópicos.Entre cenas inacabadas de viagens e permanências, deusas, irmãs, filhas e mãe aparecem no oráculo. Buscamos por constelações de nós mesmas. Mistérios a desdobrar-se em cânticos, fortes aromas, espíritos acesos. Sapas, serpentes e libélulas dançando pandemicamente. Também a noite é a Mãe, e sopra cuidados a quem procura novas quimeras. Uma nova sensação gravitacional (para um futuro ainda opaco) faz lembrar o quanto viver é coisa irreal.
Antropóloga, vegana, ex-peregrina nesse mundão.
Depois de idas e vindas durante minha vida universitária, por 1 ano e meio experimentei morar numa palafita em região de fronteira entre a Amazônia brasileira, colombiana e peruana. Mas meus trinta e dois anos bateram com tudo e a fibromialgia veio como um raio, redirecionando minhas rotas. Sigo alimentando sonhos a serem descobertos.