“O corona vírus não é nada. Minha vida não mudou. Onde eu moro, nunca vi ninguém de máscara, o boteco vive cheio, tudo continua igual”. Foi assim que Val, que tem 44 anos, quatro filhos e mora na Barreirinha, começou a contar sobre a sua vida nos últimos meses. Nós nos conhecemos há três anos, quando fiz a unha com ela pela primeira vez, numa salinha apertada que ela aluga dentro de uma academia para marombeiros que treinam para concursos de fisiculturismo. Durante a pandemia, mesmo com a proibição de funcionamento, a academia continua funcionando, só que agora a entrada é pelos fundos.
Apesar do abismo social que nos separa, meus encontros semanais com a Val resultaram em um vínculo que não sei explicar muito bem. Ela tem traços indígenas e uma beleza que se encaixa no estereótipo da mulher brasileira sensual. Usa roupas justas, brincos grandes, tem o cabelo escuro alisado e fala com propriedade sobre a vida. Fui desenvolvendo um misto de admiração, interesse e curiosidade por ela. E o corona vírus acabou servindo de pretexto para uma conversa que nunca tivemos e que nos aproximou ainda mais. Tudo começou com uma pergunta meio sociológica, meio empática: o que mudou na sua vida com a pandemia? “Nada mudou”, disse ela. “Sempre fui ‘fudida na vida’, continuo ‘fudida’ na vida”.
Agente sabe que a vida pode ser trágica, mas à medida que eu ouvia os seus relatos, a sensação era que a sua reunia todos os elementos de desgraça possíveis. “A infância mexe muito com o nosso futuro, eu tentei me matar três vezes, e isso tudo por causa da minha história”. Ela estava se referindo à violência doméstica, alcoolismo do pai seguido de abuso sexual pelo padrasto, um irmão assassinado e o outro viciado em drogas – daqueles que negociam com traficante a televisão da casa da mãe. Não bastasse ter chegado à vida adulta como uma sobrevivente, agora a cocaína entrou em sua casa, e seu marido se afunda cada vez mais no vício.
Zé é motoboy e tem dois empregos. Paga as contas de água e luz; costumava também pagar a internet mas, com os custos atuais do vício, mal consegue quitar as parcelas da sua moto. “Lá naquele Habib´s todos usam cocaína, do gerente à moça da limpeza […] esse povo tem que trabalhar muito, um vai levando o outro pro buraco”. Depois de muitas discussões e decepções, Val e Zé decidiram se separar.
Ela agora gerencia a vida doméstica sem o companheiro e, mesmo com o auxílio emergencial, a rotina continua difícil como antes: “Eu sempre vivi assim, eu me acostumei. Como o que tem na geladeira. Ultimamente não cozinho feijão para que o gás não acabe logo, também não compro Nescau, se não o leite não dura”. Os quatro filhos seguem com a vidinha no bairro, a mais velha esta grávida. “Aula online?” Isso não existe aqui. Seguem soltando pipa, jogando bola na cancha e videogame. O que mais me impressionou foi a forma ao mesmo tempo lúcida e resignada com que ela me contou tudo isso.
Se não fosse pelos noticiários, talvez muita gente nem soubesse que o mundo passa por uma pandemia. “Estou usando máscara só porque estou aqui falando com você, Amélia”. Para Val, os conselhos dos especialistas, as dicas de limpeza com álcool, as recomendações de distanciamento, nada disso encontra eco na realidade da sua vida. O que ela vê do lado de fora da sua casa é o que sempre viu: o boteco cheio, as pessoas se reunindo, a molecada circulando. “Eu não sofro com pandemia, pois a gente sempre viveu assim”. A pandemia é para poucos.