Curitiba, 13 de agosto de 2020. Chamou-me a atenção as unhas cor de rosa, manicure feita durante a pandemia. Linda. De pijama, na cozinha, falando comigo por chamada de vídeo do whatsapp. Quanta saudade, minha amiga… minha irmã querida. Presente dessas nossas existências. Fazendo pastel – recheando a massa, procurando a frigideira, ainda tinha que lavar a louça, a roupa, reclamou (por óbvio) da nossa falta de água. E bem lindona.
Nessa noite ela estava com saudade de viajar. De quando morou na Austrália. Lembrou das batalhas que travou até que isso acontecesse, de quando da primeira vez a mãe fez tanta pressão que ela acabou desistindo, no início dos anos 2000. Mas ela retomou o sonho.
Dona Chica, a mãe dela, empregada doméstica a vida inteira, dormia no trabalho e ela ficava muito com a avó. Ao mesmo tempo que afirma não ter muitas lembranças, diz também que foi uma infância “bem brincada”. Ela não lembra de episódios de racismo. É negra. E na sequencia comenta sobre apelidos na infância, em relação ao cabelo, ou relacionados à banana, e um episódio já adulta quando o último patrão fez um comentário que doeu. “Às vezes parece que as pessoas esquecem que eu sou negra”, ela me falou.
Ela entendeu seu lugar no mundo sem terapia, faz questão de frisar. Hoje a informação é mais nítida, ela me disse também. Em relação ao racismo e ao que as pessoas sofrem.
Filha única de mãe solteira, que trabalhava duro para dar tudo a ela. De origem humilde, fez a CTPS com doze anos em Curitiba porque sempre queria trabalhar. Diz que como espelho da mãe, ela sempre se esforçou muito para conseguir as coisas.
Com quatorze para quinze anos conseguiu estágio na Secretaria do Trabalho em Curitiba. Andava do Colégio Estadual Pio Lanteri até o terminal do Guadalupe, na praça Carlos de Carvalho todos os dias durante os dois anos desse estágio. São mais de 8 quilômetros. E ia muito contente porque estava trabalhando.
Mas foi um pouco depois disso que começou a pensar: eu não estou bem, eu quero viver, quero uma vida melhor, quero morar fora. E combinou tudo com uma amiga, mas a Dona Chica, apavorada em ver a filha ir embora, e acreditando que morar fora era trabalhar “de puta”, contribuiu para adiar um pouco esse sonho.
Os sonhos dela… sonho sempre de viajar, conhecer outros lugares, sonhos da infância que ainda perduram na vida adulta. Sonho de infância era ter o pai e a mãe perto. Sonhos de agora estão todos concentrados no filho. Porque sim: agora ela também é mãe. Sempre quis ser mãe. E é precisamente aqui que nossas histórias se cruzam.
Que saudade de ver ela falando. Falando, falando. Preocupada com a falta de água – ela está muito preocupada com isso – aborrecida que o cabelo “começa a ficar ruim” e ela tem que fazer, e com tudo que a pandemia limita. Mas ser mãe de bebê limita muito também, e a gente ri.
Ela é tão vaidosa. O cabelo se apressa em dizer sempre que alisa pela facilidade e porque se acha mais bonita. Acredita no valor de uma pessoa que se cuida para si, e não para os outros ou outras. Diz que sofre se não se depila, ou não faz as unhas, ou não pinta o cabelo. E ela faz muito disso tudo em casa, em meio às tarefas domésticas e o cuidado do bebê, que está com nove meses.
E isso da pandemia… no começo ela teve muito medo. Muito. Estava no puerpério e ficou meio paranóica. Em março foi para casa da mãe e lá se trancaram. Depois relaxou. Ela mora na capital com o companheiro, e a mãe mora na região metropolitana.
O companheiro ela diz que ajuda, como ele pode, mas as responsabilidades pela vida dela são dela, e se ela não fizer ninguém fará por ela. Ele é empreendedor e tem se dedicado muito nesses tempos de trabalho dobrado porque reduzido. Ela vê o engajamento e se inspira, não para copiar, mas tentando pegar os pontos positivos.
Ah sim, porque ainda tem mais essa: ela está desempregada.
Depois daquela primeira tentativa frustrada de sair do Brasil, ela trabalhou em uma loja, juntou dinheiro, foi para Austrália, voltou para o Brasil, fez faculdade de Recursos Humanos e trabalhou por anos no setor de RH de uma empresa metalúrgica. Que a demitiu logo depois de ela ganhar o bebê. Ela não esperava por isso. Fez um acordo trabalhista, e a questão financeira considera temporariamente com certa folga.
E como ela nunca teve medo de trabalhar, e já trabalhou com muito prazer e também já trabalhou muito de saco cheio, o que ela quer fazer agora é retomar o trabalho com a própria marca de roupas. Tem feito cursos online, tem estudado cases de sucesso, tem olhado marketing digital e tem certeza de que se usar as redes sociais com bastante dedicação a marca própria é uma coisa que pode dar certo.
Já comprou as camisetas para revender e tem tentado fazer posts todos os dias, mas ela confessa que também pensa: quem vai querer comprar camisetas novas se as pessoas praticamente só ficam em casa? Ela precisa recuperar o capital para reinvestir. A ideia é diversificar os produtos da marca: calças, casacos, acessórios. Desde 2017 ela vem trabalhando nisso.
Tem sido difícil pensar. O bebê não mama. E se tem uma preocupação maior que com a falta de água é essa.
Agora ela está na sala, sentou no chão em frente à televisão com o prato de pasteis, o bebê o companheiro já fez dormir e ela se permite um choppinho.
Enquanto come, mais uma vez lembro da gente comendo juntas, e conversando, e podendo se tocar e se olhar presencialmente nos olhos, e eu penso de novo como ela está bonita, e que bonito está o cabelo dela. Bem como ela gosta.
E ela volta a falar nos sonhos, e que o maior sonho para já é ficar bem para o bebê estar bem. Que ele seja feliz e ela possa estar ao lado dele. Porque está bem cansativo. A amamentação é complicada para ela, nunca foi prazerosa, e ela sofre bastante com isso. É dolorida de tantas formas, e inclusive espiritualmente, e envolve várias questões. Ela sabe que não é menos mãe por isso.
O bebê já está com 9 meses e ela nesse tempo todo não tem nem dez por cento do tempo para ela. Descreve a rotina de falar com cliente que quer camiseta, organizar a logística de entrega, de conferir pagamentos, pendurar roupa, esquematizar as que faltaram lavar por conta da falta de água, fazer as comidas – porque a do bebê é separada – arrumar camas, passar aspirador, varrer, organizar o banheiro, limpar tapete. E que ela está esgotada.
Desde que ele nasceu ela teve problemas nos ductos do seio direito, e o leite empedrou, e ela sentiu tanta dor, e ele já passou fome, e já foi enfermeira de leite ajudar ela com ele recém-nascido, e já teve pediatra orientando a cortar da alimentação tudo que ela gosta para ver se não era algum daqueles alimentos que estaria interferindo, e já teve obstetra drenando mama, e já teve médica da alergia, e já teve…
Pois é. Ela sempre quis ser mãe. Mas está cansativo e ela está esgotada. Sente que faz as coisas no automático e não consegue olhar para ele. Que ela tem que cuidar dele ao mesmo tempo que tem que cuidar do seio e tem que fazer o desmame e tem que introduzir a alimentação dele e tudo o mais que ela tem que fazer pelo fato de ser mãe e é o que uma boa mãe de hoje em dia faz.
Mas então aconteceu. No dia de hoje. E era isso que ela queria me contar.
Nessa gangorra emocional, enfim o seio desentupiu. Ensinaram para ela que o queixo é a parte mais forte do neném para sugar. Pois ela passou o dia várias vezes “de quatro”, porque foi a forma de encaixe que ela encontrou de oferecer o peito a ele e ele pegar de forma que o queixo dele massageasse o seio e o ducto voltasse a funcionar. Deu certo!
Isso aliviou a mente e o coração dela, mas não a fez desistir do desmame. Sentindo-se fisicamente melhor e sem dor, ela fez uma dança.
Uma dança do sol. Que trouxe luz para este dia. Que iluminou olhares. Não percepções. Olhares. “Ele olhava dentro do meu olho enquanto eu dançava com ele”. Mãe e filho dançaram juntos. E com ele no colo, ela olhou nos olhos dele. Feliz. Completa. Realizada para aquele momento. E de que é feita a vida se não de momentos?
Ela se permitiu o tempo para ele. E para ela também. E lembrou do sonho de ser mãe. E que estava ali com a realização desse sonho nos braços. Foi libertador.
Nossa conversa quase termina com ela refletindo sobre esse distanciamento acarretado pela pandemia. Ela também tem saudade de mim e do meu filho. Pergunta se eu penso que nossos filhos estão passando o primeiro ano de vida trancados. E diz que a gente já se reinventou em tanta coisa.
E a conversa termina com ela me dizendo que – olhem isso – ainda pensou em aceitar um trabalho de cuidar de uma menininha duas vezes por semana por seis horas por dia, assim ela teria um trabalho remunerado e sairia um pouco de casa, não ficando tão imersa nos trabalhos domésticos que sugam e “não rendem”, e estaria de fato gerando uma renda em vez de só sonhar.
Desliguei com mais saudade.
E escolhi essa mulher pela representatividade da mulher brasileira. Da força, da luta, dos desejos, das dificuldades e superações: econômicas, de raça/ etnia, em relação a gênero. Mulher que admiro e que graças à pandemia tenho visto só pelo telefone.
Que tem passado por uma gama de situações durante este período: tornou-se mãe, ficou desempregada (uma pessoa para quem o trabalho tanto importa, não só pelo dinheiro, mas também pelo sentido que podemos perceber que dá à sua existência), teve dificuldades na amamentação e está tentando empreender no comércio eletrônico.
Lembrando que ser mãe é a realização de um sonho para ela, e que veio carregado de autocobrança e cobrança social em relação ao que “uma boa mãe” deve fazer justamente em um período em que estamos todos e todas aprendendo novas formas de viver também por conta do vírus.
Uma mulher que pouco menciona a participação masculina em sua vida.
Em tantos e tão abrangentes aspectos sinônimo de coragem, essa mulher brasileira conquista espaços em um movimento natural que não exclui ou invalida as lutas por direitos iguais que nos precederam ou as que ocorrem pelos movimentos de mulheres a cada dia do presente. Movimento natural similar a uma dança, como da Lua e do Sol a cada noite e dia de descanso e de esperança que se sucedem.
Foto de Raphael Umbelino.
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Sou Silvia Turra Grechinski, advogada, professora da PUCPR nas Escolas de Direito, de Negócios e de Comunicação; mestre em Sociologia – Núcleo de Estudos de Gênero pela UFPR. Pesquisadora das temáticas feministas e queer no âmbito da autonomia do corpo e dos direitos sexuais e reprodutivos. Membra da Comissão de Estudos sobre Violência de Genero da OABPR. Tenho 38 anos, mãe solo do Koa que está com 11 meses e sou voluntária na ONG Parceiros do Mar.