No início era apenas o espelho. Imóvel e previsível. Ao entrar no banheiro já me preparava para o encontro comigo mesma, já entrava no banheiro ensaiando o melhor ângulo para me olhar, lavar as mãos rapidamente e voltar a fazer qualquer coisa que tinha sido interrompida pelo despotismo do organismo. Também sempre impliquei com fotografias espalhadas pela casa, não há nenhuma por aqui como pode perceber, já me acusaram de ser pedante, mas considero de mal gosto pôsteres na sala de jantar em preto e branco de casais que se abraçam, geralmente ele interpretando o papel de forte, ela num sugestivo papel de subalterna, de gratidão, ele com o queixo direcionado para cima, o dela voltando-se para o tórax, com os olhos esforçando-se para alcançar os dele. As molduras também não ajudam, a maioria de plástico, imitando madeira entalhada, me causa verdadeira repulsa. Prefiro as fotos guardadas, em caixas em fundos de armário, em maleiros, em gavetas de pouco acesso, sinto um prazer de ver a fotografia se transmutar nesses lugares escuros, o tempo emagrece meu corpo, meu cabelo ganha viço, a roupa fica mais alinhada conforme o tempo passa. Eu era assim, mas assim não me percebia. O presente nunca me permite ver os meus próprios contornos, é como se encostasse o nariz no espelho e tentasse perceber quem realmente sou, é preciso tempo, é preciso dar alguns passos para trás para acertar o ângulo do olhar. No presente sou sempre disforme. Mas tem algo que realmente gosto em relação aos espelhos, são os três segundos que o cérebro leva antes de reconhecer a própria imagem, isso acontece quando se encontra um espelho atrás de uma coluna nas lojas de roupa, três segundos apenas, eu me olho e não me reconheço, como se tivesse dado um encontrão com um estranho, um leve prazer de ver alguém que me agrada, como se fosse outra, – Moça bonita. Mas logo em seguida a satisfação de ser ela se desfaz, se me demoro diante do espelho começo a me deformar, o nariz começa a aumentar, os lábios diminuem, os olhos caem. O avesso de Narciso.
Quantos são os modos de se refletir. O vírus que se espalha fechou as lojas que escondem espelhos em suas colunas e elevadores que ao se abrirem duplicam quem espera. Muitas pessoas dizem que a desaceleração do dia à dia permitiu um mergulho para dentro de si, se conhecer melhor, o meu mergulho foi para fora, ter que encarar meu próprio corpo e sinto que me afogo. Na primeira vídeo-chamada do grupo de estudos feministas pensei em inventar uma desculpa, dizer que estava doente, matar uma tia. Todos me veriam, eu me veria, durante uma, duas, três, quatro horas. Todos me veriam e não teria como censurar com o baixar do olhar aquele que ousava se prender mais de três segundos sobre alguma parte do meu corpo. Sabe o protocolo do olhar, não focar em pontos do corpo da pessoa que tem diante de si, olhar só nos olhos. No encontro virtual poderiam me olhar impunemente, sem o menor constrangimento, deixar a tela inteira só com a minha imagem, dar um zoom. Não adiantava matar a tia pois era provável que algumas delas morressem com o vírus e precisaria de fato da justificativa. Dizer que estava doente parecia uma brincadeira de mal gosto que poderia ser descoberta por algum Deus invisível e vingativo que por prazer mórbido gostasse de tornar mentirinhas em algo trágico. Tomei banho, hidratei o cabelo com cuidado, argila verde para fechar os poros, base com toque seco para amenizar o oleosidade, os fios em excesso da sobrancelha arranquei e os que faltavam desenhei, apagar todos os sinais de que meu organismo funciona com regularidade. Um equilíbrio entre o excesso e a falta. Quando o encontro começou a primeira coisa que fiz foi colocar em tela cheia cada um dos rostos, um por um, olhar, perceber como movimenta os lábios, olhar a casa, os detalhes. Enquanto as observava não via a mim mesma. Fingi pudor no momento em que a colega leu o texto, baixei a cabeça como se quisesse manter qualquer coisa da educação que mantinha nos encontros físicos, de não ficar olhando o rosto das pessoas que se concentram em algo. Tudo parecia indo bem, porém, quando a colega terminou a leitura num relance de dois segundos vi o meu rosto, como se fosse outro, ele ainda tencionava os pequenos músculos da testa devido o esforço que fiz para me concentrar num texto que era lido sem que eu tivesse uma cópia para acompanhar. Ali no meio dos músculos da testa que contraiam havia um sulco, um rio, que não se desfez quando eu aliviei a tensão. Um rio perene, que seguia de norte a sul, em rápida descida. Botox, um preenchimento, ácidos, colágeno, não era possível ficar naquele estado. Que desventura do destino se encontrarem no mesmo rosto as espinhas da adolescência com as rugas da velhice. Início de um declínio, o rosto todo cortado por esse rio e seus afluentes como gente que deixa o mato se alastrar pelo jardim, num relaxo irremediável. Aqueles pequenos sulcos que surgem nos lábios e fazem vazar o batom para todas as direções. Não ouvi mais nada, apenas as vozes das youtubers que falam sobre o hialurônico no entardecer, o retinóico no anoitecer, a vitamina c pura e nanoencapsulada pela manhã, a voz da Carla sobre bodypositive ao fundo, bem no fundo, muda. Carla. Gorda. Bem gorda. Feliz. Tira uma foto de cropet. Sabe o que é um cropet? Uma roupa que não chega a ser uma miniblusa, mas deixa um pedaço da barriga aparecer, não o umbigo, mas um pouco mais acima. Ela tira selfies, será que ela não consegue perceber que tem olheiras profundas, que os óculos de armação escura acentuam o escuro da pele, não comento nada, não curto a foto dela. Ontem tirou uma foto no banheiro, com um espelho enorme, como pode ter um espelho tão grande, uma foto que consegue capturar todos os ângulo de Carla, o que a foto não mostra o espelho revela. As fotos dela vem seguidas de textos, fala sobre a infância, sobre a professora de educação física e eu tenho vontade de estrangulá-la, tenho vontade de estrangular a mim mesma. A foto dela com o marido, lado a lado, com narizes colados, um no outro, em preto e branco. A comida sem gordura, o ácido que arde a pele, o aparelho que puxa meus dentes como um cabresto, tudo dói e me deforma enquanto Carla se delineia, se desenha, olha para dentro e também para fora, todos os ângulos, eu me apago.
Que texto maravilhoso!