Por Vilma Aguiar
Quando a coroa portuguesa decidiu explorar comercialmente a colônia, seu principal desafio era conseguir mão de obra suficiente para a empreitada. Em pleno Renascimento, a saída encontrada foi apelar para o trabalho escravo. Todos conhecem a história. Primeiro os indígenas e depois os africanos.
Para escravizar é preciso violência. Muita. Primeiro, a física. Cárcere, grilhões, surras, ameaças, mortes exemplares. Depois, a simbólica. É preciso retirar a humanidade do escravizado. É preciso transformá-lo em coisa a ser possuída, em um objeto, arrancando-lhe tudo. Sua liberdade e sua alma. É preciso subjugá-lo antes de tudo.
Depois de quase 300 anos de funcionamento exitoso deste dispositivo, para ser foucaultiana, não havia interesse em desmontá-lo. E a República, se não tinha mais escravizados, não se intimidou em produzir subcidadãos.
Nos dias atuais, eles são milhões. Muitos milhões. É impressionante que mais da metade da população brasileira tenha pedido o auxílio emergencial. 110 milhões de pessoas. Qual seria o tamanho da fraude? Vamos ser pessimistas com os brasileiros e chutar 10%. Eu apostaria que não chega nem perto desse percentual. O fato é que a esmagadora maioria da população do país vive na viração. No trabalho informal, na precarização. No vender o almoço para comprar a janta.
Foram nomeados invisíveis pelo governo e pela mídia. Fico matutando. Invisível para quem, cara pálida? Ou vamos fingir que não sabíamos que o ambulante, a faxineira, o pedreiro, a manicure, o vendedor de cachorro quente, os autônomos estão ali vivendo com a diária do trabalho, sempre à beira do precipício de uma doença, de um acidente, de uma crise? Vamos fingir que as políticas públicas nunca os amparam porque não os enxergavam? O eufemismo é parte do dispositivo.
Na emergência sanitária, dado o tamanho dessa população, para evitar saques e caos, a elite política brasileira aceitou conceder um auxílio. Mas não “de graça”, não como uma ação de proteção aos cidadãos, uma garantia de renda mínima. Nada disso. Mais uma vez, apenas como um instrumento a mais da excelsa máquina de humilhar, da máquina de moer dignidade, da máquina de matar que é o Estado brasileiro a serviço da elite econômica.
Vamos a um relato. Um pequeno caso entre milhões de outros de como opera a moagem.
N., 40, é mãe solteira de duas crianças pequenas. Batalhadora, faz pedagogia a distância com bolsa de 50% paga pouco mais de 100 reais pela mensalidade. Sonha em ser professora. Fazia faxinas 5 vezes por semana para manter sua casa e suas filhas. Em meados de março, seus patrões a dispensaram. Não para sempre, claro, seus serviços são ótimos. Só durante a quarentena. Ela mora longe e ninguém quis correr o risco de ter dentro de casa quem precisa pegar duas ou três conduções para chegar ao trabalho. Tampouco achou que seria bacana continuar a pagar. Alguns tiveram eles também queda da renda. Outros não concordam em financiar vagabundagem. Não trabalha, não ganha, simples assim.
N. solicitou o auxílio no dia 03 de abril. Apesar de considerar que tem relativo domínio das funcionalidades do celular e dos aplicativos, errou o preenchimento. Alguma filigrana idiossincrática do sistema. Depois de 20 dias em análise, seu pedido foi reprovado. Análise inconclusiva disseram. Mais bem informada, refez. Mais 2 semanas. Desta vez, aprovado. Agendamento do pagamento bem à frente. Em fins de maio, a primeira parcela foi depositada em sua conta em um banco digital. 70 dias desde que recebera o último pagamento. Todas as contas atrasadas, inclusive o aluguel. A comida das crianças não faltou porque o pessoal do culto evangélico que frequenta e os vizinhos, ao contrário dos patrões, são solidários. Dividem o pouco que têm.
Começou a acompanhar freneticamente as notícias sobre a segunda parcela já que a primeira não cobriu nem as contas atrasadas, que dirá a farmácia, o supermercado. Viu que pagariam dia tal, correspondendo ao mês de aniversário dela. No dia, nada, nem nos seguintes. Nem dinheiro nem informação. Viu angustiada notícias na imprensa de que a Caixa estava concluindo o pagamento da segunda parcela em 13 de junho. Gastou seus créditos do celular procurando notícias sobre o que teria acontecido com ela. Com pessoas como ela. Um erro, só pode ser. Viu que talvez procurando a Procuradoria, mas onde? Mas como? Começou a entrar no site da Caixa todos os dias. Depois de quase 10 dias de angústia apareceu uma mensagem em sua área de beneficiária. A data do pagamento seria dia 02 de julho. 37 dias depois do primeiro. O governo não considerou o atraso da primeira. Não considerou que ela ficou mais de 60 dias sem receber nada.
E, surpresa macabra, o dinheiro não seria mais depositado diretamente numa conta já existente do beneficiário como fora na primeira parcela. Para quê dar esse luxo a esse povo, não é mesmo? Ele será depositado numa conta de poupança digital da Caixa, especialmente criada para esse fim. Da data de depósito até 10 dias depois, o dinheiro só pode ser gasto para pagar contas. Só depois pode ser sacado ou transferido para outra conta. Se a Caixa Econômica Federal pode ficar com os trocados dos miseráveis do Brasil por alguns dias utilizando-os na jogatina do Banco Central, por que não? Provavelmente sua diretoria quer melhorar os resultados operacionais do Banco, outra forma de dizer, seus próprios currículos. Afinal é dinheiro dado para gente que não trabalha. Quem vai reclamar? A cavalo dado não se olha os dentes.
N. não sabe nada disso. Só viu sua angústia aumentar um pouco mais. Precisa de dinheiro vivo. Tem dinheiro emprestado para devolver. E o seu não chega nunca.
Finalmente, no glorioso dia 03 de junho do ano de Jesus Cristo 2020, entrou no aplicativo Caixa Tem. O aluguel, a luz, a água, tudo atrasado. Pagar isso pelo menos. Para sua surpresa, há uma fila para acessar o aplicativo. Mal acreditou no que seus olhos viam. Fila para usar um aplicativo? Mas sua odisseia estava ainda longe do final. A espera durou 10 horas. Pegou o celular 100 vezes, o dia inteiro vendo a barrinha que simboliza a fila andando menos que a fila do INAMPS dos anos de 1980. Lembrou de sua mãe levantando-se às duas da manhã para conseguir um atendimento. Às oito da noite chegou sua vez. Podia finalmente acessar o aplicativo. Só que não. É preciso uma autorização, uma autenticação do celular. A criação de uma senha etc. etc., afinal é a abertura de uma conta. Mais 3 horas. Saiu do aplicativo às 23h30. Tudo o que conseguiu foi habilitar a conta. Pagar alguma coisa mesmo, só da próxima. Como é sexta-feira, mais dois dias sem pagar as contas. E o medo de dar erro, de não conseguir, da luz ser cortada. Como confiar num aplicativo que demora 13 horas para dar uma resposta? A ansiedade não a tem deixado dormir.
N. se considera privilegiada. Está com as filhas em casa. Sabe usar o celular, lê algumas notícias. Tem medo da Covid-19. Menos que seus vizinhos que engolem o pavor e vão para o trabalho todos os dias.
São milhões de N. neste país.
Para os manter na subcidadania, é preciso dobrar-lhes a espinha, é preciso deixá-los esperando ansiosamente as migalhas que caem das mesas mais fartas. É preciso deixá-los desinformados, é preciso submetê-los a esperas kafkianas em filas virtuais. Ou nas reais em parcas agências espalhadas pelo país. É preciso criar as maiores dificuldades para que fiquem muito cientes do valor do que estão recebendo. Para que não duvidem que não é um direito, mas concessão misericordiosa do governo. É preciso que a humilhação seja sua companheira mais fiel para que eles sejam dóceis e resignados. Para que seu lombo seja calejado o suficiente para receber de bom grado mais uma chibatada.
É preciso que toda a máquina funcione perfeitamente para que, ao final do processo, sejam gratos. E retribuam com a aprovação do governo de plantão.
A Covid-19 revelou-se um ótimo negócio. Pelo menos para a máquina onde os subcidadãos são minuciosamente cultivados.