Quando, em abril e maio de 2020, as imagens de ruas vazias em Paris, Roma, Londres e outras metrópoles europeias rodaram o mundo, foi impossível não perceber que a história, com H maiúsculo, batia nas nossas portas. Viramos personagens de uma nota de rodapé desta, a nota da peste do século XXI, a primeira inteiramente global da espécie humana.
Em algumas cidades, animais selvagens passeavam pelas calçadas nos lembrando que a natureza está à espreita, apenas esperando sua vez de reinar soberana depois que a praga que ameaça o planeta, nós, for dizimada. Ela é paciente, pode esperar milênios na certeza de que nada é para sempre e de que nós trabalhamos em favor da nossa extinção.
Foi o momento em que muitos começamos a nos perguntar como seria o mundo pós-pandêmico.
Naquele ponto, a pandemia era os números da Itália e os da Espanha. Algumas centenas de mortos por dia e a impressão de que algo invisível varreria o planeta em alguns meses, mas um belo dia cessaria. Terminaria como tinha começado. Trancados em casa, nos restaria esperar.
Ali havia a esperança de que, quando setembro chegasse, com as flores do hemisfério sul chegaria uma nova liberdade, e muitos se puseram a pensar na lição aprendida. Menos poluição no ar, menos carros nas ruas, vizinhos confraternizando com canções nas varandas, solidariedade planetária. A aldeia global finalmente irmanada. Um único ser humano contaminado, ainda não se sabe como, havia desencadeado a pandemia. Então, parecia claro, enquanto não acabar para todos, não termina para ninguém.
Essas ilusões duraram bem menos que a pandemia.
O mundo hoje é um lugar pior para se viver. Os pobres estão mais pobres e o fosso entre eles e os endinheirados, maior. As mulheres perderam anos de conquistas no mercado de trabalho e avançamos casas no tabuleiro da desigualdade. Muitos órfãos ficaram para trás, muitos perderam seu/sua provedor/a. Famílias inteiras morreram e os que ficaram estão destroçados. E ninguém quer saber dessa dor e dessa perda.
Em outro campo, os países ricos começaram sequestrando respiradores (quem não se lembra dos EUA desviando avião com suplementos médicos) e seguiram comprando todas as vacinas disponíveis, mesmo as que nem vão usar. Farinha pouca, meu pirão é soberano e o resto que se dane. O mundo não é uma aldeia, é uma grande fronteira com muitas catracas. É preciso ter o passaporte certo, a cor de pele certa, a procedência certa. Os outros são apenas fonte de contaminação.
Além disso, descobrimos que o negacionismo é uma pandemia maior e mais duradoura que a COVID-19. Depois do holocausto, da terra plana, a vacina. Ele avançou também uma casa. Da discussão de coisas teóricas ou históricas, o abismo mesmo da morte. Quando nem esta convence um cidadão a confiar numa coisa tão antiga e segura quanto uma vacina, é porque há pouca coisa mais a perder.
Se nosso foco mira o Brasil, aí então pode-se dizer que nosso futuro cheira a naftalina e lembra um passado de governo autoritário e caos econômico. A pandemia em pleno governo Bolsonaro é como a peste elevada à enésima potência. Recorde de mortes, recordes de pessoas que mesmo curadas continuam doentes e talvez o sejam por muitos anos ainda, desemprego galopante, inflação alta, democracia moída. Nosso mundo pandêmico já é pior do que era o recém saído da ditadura há 30 anos, e nosso futuro é pouco mais que uma miragem de escombros do que já foi destruído e continua sendo.
Setembro chegou pela segunda vez e continuamos mascaradas, amedrontadas, inseguras quanto ao futuro que nos espera. Talvez nostálgicas do mundo que acabou em fevereiro de 2020. Não que fosse bom, mas era mais conhecido.
Pensei então que a situação é tão grave que não nos permite o afago do pessimismo. Então, vá lá. Não há mal que dure para sempre, por isso vamos comemorar ao menos a primavera. E não vamos esquecer de todo o trabalho a ser feito.
Foto de RODGER BOSCH / AFP (Cidade do Cabo, África do Sul)
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