Vida ou Bolsonaro?

Autora: Tânia Bloomfield

Tânia Bloomfield é artista visual e professora do Departamento de Artes da UFPR. Contato: taniabloomfield@gmail.com

A imagem foi construída a partir de dois planos. No primeiro, pulmões que aludem a um corpo ferido, que não pode respirar, seja pelos tiros de arma de fogo ou pela doença que o toma (Covid-19) e, ao mesmo tempo, que fazem referência ao meio ambiente que queima e é destruído (aqui, a metáfora da floresta amazônica como pulmão do mundo). O título “Vida, ele quer a sua” remete ao slogan apresentado pela figura simbólica do Tio Sam, “I want you”, usado para o alistamento militar, nos EUA. Em resposta ao título “Vida, ele quer a sua”, poderia se replicar: “Ele, não”! No segundo plano, uma arma de fogo, em referência à apologia ao armamento da população, em nome da “liberdade do povo”, e às demais necropolíticas propostas pelo governo Bolsonaro.

Todo projeto político é antecedido pela estética. Por uma determinada estética. As formas e efeitos de sentidos que determinadas forças políticas mobilizam em sua sanha pelo poder, manifestam-se no estilo dos discursos, na eleição de determinada paleta de cores, na apropriação e uso de símbolos que são partilhados pela sociedade, entre outras coisas. Na maior parte das vezes, com a intenção de se desvirtuar e se subordinar sentidos anteriores das formas e símbolos compartilhados às novas pragmáticas que interessam a um projeto de poder, visando-se neutralizar forças contrárias e vozes dissonantes. A cultura, então, deve ser um dos primeiros segmentos
da sociedade a ser atacado pelo projeto de poder, especialmente, se esse projeto for de caráter fascista. Assim, no campo dos comportamentos e do dress code, vocifere-se que “menino veste azul e menina veste rosa”, numa clara contraposição e cerceamento à diversidade de gênero e à de orientação sexual. Na nomeação de servidores públicos de primeiro, segundo e terceiro escalões, opte-se pelo figurino de camuflagem, pelos
tons de verde-oliva ou cinza, por uniformes enfeitados com galardões, insígnias, medalhas, e ornamentos alusivos às patentes militares, para indicar que governos de direita e militarizados são mais competentes, ilibados, e moralmente superiores do que os de esquerda, pois são os únicos que defendem a lei, e os mesmos que voltam as costas às liberdades de expressão, aos direitos civis, e à Constituição. Afinal, o “país precisa ser grande novamente”, à imagem e à semelhança do império. Nem que para
isso seja preciso fechar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, com a necessária e indispensável ajuda “de um soldado e de um cabo” ou de um novo AI-5. E a cor verde, da bandeira e a do dinheiro, deve ser a eleita para se propagar a relação promíscua da política com o mercado. Objetos que remetem à morte e à aniquilação de corpos, como armas brancas ou de fogo, apresentem-se em broches nas lapelas, em peças de vestuário, em blogs, em sites, em logotipos, em coletivas de imprensa, inclusive em materiais oficiais e institucionais, públicos e privados. A caveira, usada
como símbolo de morte e de destruição do inimigo, nunca será relacionada ao sentido latino de vanitas, caro ao humanismo renascentista e que é mencionado no Livro de Eclesiastes, capítulo 1, versículos de 1 a 3. A única cor dos corpos a ser preservada é a branca. Não porque represente a paz. Ao contrário. Qualquer outra deve ser expurgada e, de preferência, extinta, por ação, omissão ou negligência. “E daí”? A sonoridade relacionada a tal projeto político não poderia ser outra que o modo imperativo das vozes em altos decibéis, que demanda ordem, disciplina e subserviência, e a das marchas e fanfarras militares. É melhor lembrar-se: “manda quem pode;
obedece quem tem juízo”. Mas se o discurso for direcionado ao cercadinho de corpos dóceis, crédulos e de olhares bovinos, nos arredores palacianos, sussurre-se que a imprensa profissional é canalha e vomite-se fake news, aos borbotões. E se houver uma inclinação do poder político à teocracia, imponha-se, adicionalmente, a escolha musical óbvia, a das cantilenas religiosas, contanto que não sejam aquelas das religiões de matrizes afrodescendentes. Para ancorar tal mistura, leia-se o slogan: “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”. Procure-se praticar, promover e dar prevalência aos gestos obscenos, manifestados nos sorrisos cínicos e debochados, nos braços atléticos que exibem veias e músculos turbinados por esteroides e que portam fuzis, nos espetáculos circenses públicos de flexões de corpos decrépitos, nas mãos em forma de “arminhas”, nas que têm os dedos do meio em riste, ou nas que agarram a genitália, gesto
acompanhado de uma torção de corpo grotesca e de movimentos repetitivos, como ameaça desferida pela masculinidade tóxica e feminicida. O obscurantismo deve se sobrepor à ciência e afirmar, um milhão de vezes, que a Terra é plana, que a cura da pandemia de Covid-19 não virá pela “vaChina”, e que pílulas e grãos mágicos devem ser prescritos por quem quiser incorrer em crime de exercício ilegal da medicina, inimputável e livremente. A paisagem nacional deve ser dominada pela imagem da terra
arrasada, cor de poeira em suspensão no ar, da fumaça de corpos calcinados, em prol do “progresso e da boiada”. Este foi o projeto estético/político que a maior parte da sociedade escolheu, em 2018. A oposição entre a vida e a morte parece clara. Morte à decência, à investidura, à responsabilidade e à liturgia do cargo público. Morte à
solidariedade. Morte à empatia. Morte aos corpos das minorias, morte aos “maricas”. Morte às instituições e à impessoalidade no trato da res publica. Morte ao meio ambiente. Morte à democracia, à diferença e à diversidade. Vida ou Bolsonaro? A escolha é muito difícil?
Tânia Bloomfield
26/01/21

*Mais sobre @vidaoubolsonaro no Instagram

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *