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Autora: Elaine Della Giustina Soares

Sou Elaine DG mãe, Entomóloga e professora da UNILA, em Foz do Iguaçu. Não quero esquecer a unicidade de tantas vidas perdidas.

Ela queria fazer um memorial. Um memorial que tão logo estivesse pronto seria desfeito, como um tapete de Corpus Christi, que ela via na televisão a cada ano, um feriado que traz muita reflexão, mas cujo significado ela só conheceu há pouco tempo. Como a mandala dos monges tibetanos, construída a cada dia e desfeita tão logo pronta. Ela nunca viu, mas leu sobre isso no livro de Vik Muniz. Artes onde a reflexão durante o processo importa mais que a materialidade final, que ficam fixadas em diferentes mídias, conforme o ponto de vista que o autor da mídia quer passar. 

O que ela quer representar são números, que em sua totalidade se apagam com os dias, parecem não importar, pois sua materialidade desaparece para todos, em enterros sem velório. Não desaparecem para quem conviveu. Para quem conviveu, aquele um é o tudo, o tudo que importa. Como representar materialmente aquele número para os que não atribuem materialidade aos números? Para os que, como ela, contam nos dedos e só tem duas mãos, até dez os números são objetificáveis; para além disso, tornam-se imateriais, vinte, cinquenta, cem, mil, dez mil e a conta apenas sobe. Os números se distanciam do material e se normalizam. Não a normalização do gráfico estatístico. Ainda estamos na subida do crescimento exponencial? Qual o expoente? A curva é platicúrtica ou leptocúrtica? Quando atingiremos o ápice desta curva? É sim a normalização do “ah, mas todo dia está sendo assim”, do “o que se há de fazer?”, do “não tem jeito mesmo, seja o que Deus quiser”. 

Para ela, lá pelas dezessete horas a ansiedade aumenta. Os números estão chegando. Quais são eles? A cada dia chegam mais tarde. Todas estas vidas importam para muitos alguéns. Mortes que se amplificam em dimensões fractais. Em famílias que se perdem. Em incontáveis dias de cuidado dos profissionais de saúde, que estão acostumados com perdas, mas não nestas dimensões. Como está a saúde mental deles? A dela está em frangalhos. Como representar cada uma destas vidas? Com o nome de cada uma delas? Ela está acostumada com listas de nomes, busca, a cada dia, os nomes que precisa, em listas e mais listas de retidos, matriculados, presentes na aula. Listas de nomes de gente, de animais e de lugares. Os nomes de que ela não precisa naquele momento viram borrões, não está na hora de pensar neles. 

Feijões! Sim, feijões, estamos acostumados com eles, em pacotes de quilos, em xícaras de medidas, quando os catamos são como as listas que ela usa, a maioria vira borrão e o foco de interesse é destacado. É o mesmo quando ela está triando frasco após frasco de coleta, alguns se destacam e o bolo amorfo de outros insetos segue sem identidade. Em listas, só o conhecido, o que interessa se destaca. Na prática de aula com feijão, cada um deles importa, cada pequena mancha é analisada, eles são analisados e agrupados em conjunto e, então, o conjunto passa a ser o objeto. Mas, e se ela contar os feijões um por um, alinhá-los de forma simétrica e destacá-los em uma grade? Serão percebidos como indivíduos? Conseguirá, com isto, mensurar quantos se foram? 

Ela queria fazer uma instalação artística, efêmera como a mandala tibetana, fixa apenas em videoarte, como aquelas que ela via quando morava em uma cidade que tinha museus, que passavam em telas ligadas vinte e quatro horas, que começavam tão logo acabavam e que prendiam a atenção e faziam pensar no processo. Ela sabia que, neste caso, o processo duraria horas, e que tão logo se encerrasse, a representação estaria defasada. E, ela, destruída. E aqueles feijões virariam o almoço do outro dia, ou de vários, ela não sabia exatamente quanto dez mil, seiscentos e vinte e sete feijões seriam em xícaras. Nem quantas horas, quantos dias se passariam. A dor daqueles dias, daquelas horas de contar cada um daqueles feijões ela sabia exatamente qual seria. Acho. Então, o vídeo teria que ser acelerado, ela não sabe o nome que se dá a isto, como aqueles filmes que mostram as plântulas andando pela floresta. 

Também gostaria de representar o processo com a técnica de Michael Wesely, onde a exposição do filme fotográfico, por um longo tempo, a tornaria borrão enquanto manteria estático cada um daqueles feijões. Quanto mais recentes, mais nítidos, por impressionarem o filme por mais tempo, agrupados em um mesmo espaço e em um mesmo momento, mantendo coeso e objetificado em informação visual aquele número que se acumula a cada dois minutos e que se amalgama em um, ao final do dia, perdendo sua unicidade e se borrando naquele algarismo que permanecerá com cinco dígitos por bastante tempo, por caber nele uma infinidade de vidas que se borram na cabeça dos que não se impactam. 

Decidida entre o filme acelerado e a técnica de Wesely, olhou para o lado e viu seu corredor, companheiro diário e integral dos seus últimos cinquenta e cinco dias, todos os dias, não sabe há quantos dias. Um corredor com uma porta de vidro, que traz grande luminosidade para o seu teto branco, suas paredes brancas e seu chão branco, azulejado; exatamente vinte azulejos naquela branquitude. Luz que se reflete nos vidros dos seus quadros e na porta de plástico do quadro de luz tornando todos apenas retângulos brilhantes presos às paredes, tornando idênticas coisas boas, ruins e inócuas. Nos quadros, as telas de sua sogra, o presente de casamento. As cenas infelizes dos seus Rugendas, que estão lá, todo dia, para que ela não se esqueça que a história existe, que não deve ser apagada, mas sim refletida e aprendida, não escondida e repetida (apesar de não parecer ser esta a opinião em voga fora da sua bolha). A luz também se reflete em um pôster da festa de Halloween do American Museum of Natural History, que ela tem, não porque esteve lá, mas porque um amigo lhe deu, por saber que ela gosta muito de uma banda a que sempre recorre quando precisa ter uma visão mais positiva das coisas, “we all live in happiness our life is full of joy, we say the world tomorrow without fear…”. 

Seu corredor possuía todos os atributos de que necessitava. Um túnel de luz com um chão gradeado, com uma luz que se esvai de lá até aqui, onde ela está, tais como os dias que tem passado. Ao invés da luz do fim do túnel, cada um daqueles vinte azulejos se afasta cada vez mais da luz do começo do túnel, a porta de entrada daqueles cinquenta e quatro dias. Cada dia mais distante daquele começo, quando cada vida unitária comovia, quando havia leitos para todos, em todos os lugares, e não era necessário fazer escolhas. Ela não conseguia imaginar a dor, que alguém que jurou preservar a vida, sentia ao ter que fazer a lista, a lista dos que mereciam uma chance e dos que seriam deixados à própria sorte. Ela mesma tinha feito este juramento, mas pelos caminhos da vida, a parte que lhe cabe não pertence ao cuidado, mas sim à construção de listas. Por isso se ocupa dos números, números que ela mesma tem dificuldade de ler, pirâmides etárias, dados censitários e estes números diários, que caem como bombas em sua cabeça e no seu coração, e que estão pulverizados em todo o território do país, se espalhando através de suas malhas viárias e se adensando onde a população e as desigualdades são maiores. 

Voltando à viabilização do seu memorial. Como fazer? Sua casa seria inundada pela força vital de suas crianças, que acordariam em breve para comemorar o dia das mães. Motivo de alegria e esperança diária, também de cansaço físico e mental. Qual será o mundo que restará para elas após a primeira quebra sistêmica de suas vidas? Algumas destas quebras se dão em escala local, e exigem a reestruturação social posterior, outras em escala global, mudam a história e implicam na reestruturação da humanidade. Ela mesma passou por isso poucas vezes ao longo das suas quatro décadas, as grandes rupturas que afetaram sua vida estavam distantes, e eram de menor escala também. Esta é a primeira grande quebra que está perto, ao seu redor, na sua vida. O que virá depois? Como será o mundo? A cada dia, o depois se interrompe para aqueles que se foram, aqueles milhares de uns. Por enquanto, ela só conhece os nomes do mundo das artes, ela espera que continue assim, os artistas sobrevivem na sua obra, para aqueles que apenas os admiram. Mas são a família de alguém e, para esses, é o fim. 

Ontem foi a vez de Abraham Palatinik, artista plástico, que ela conheceu recentemente em um livro de entrevistas muito bom. Neste livro, conheceu também Cildo Meireles. Sim, a chave da sua resposta. Seu memorial material e efêmero, passaria a ser imaterial, pelo menos para ela, e passaria a ser uma coisa com que ela tem se ocupado nos últimos tempos, um manual. Um manual de instruções de uso. Um manual de instruções, que na concepção de Cildo, permite que a obra de arte seja feita, e sentida, por qualquer pessoa, a qualquer momento. Entretanto, no caso do memorial, como a obra proposta é datada, o a qualquer momento é agora. Sendo deixado para o futuro, o memorial poderá resultar no almoço de toda uma população, dada a quantidade de feijão. A reflexão será de um passado irremediável, e não do futuro imediato, que urge pela conscientização de que, sim, todas as vidas importam e são insubstituíveis, principalmente para aqueles que as perderam e para os seus familiares. 

Segue então o manual de instruções, que certamente seguirá sem ser seguido, como tem sido feito com as recomendações que poderiam ter encolhido os números. 

Instruções de uso: 

a) O corredor. O corredor deve ser longo, claro e terminar em uma porta de vidro bem iluminada, o chão deve ser quadriculado. 

b) O feijão. Melhor que seja o carioquinha, todos muito parecidos, mas com rajados únicos, desde que você devote sua atenção a eles. 

c) Os dias e os números. Conte o número de azulejos, representando os dias, começando pelo quadro mais próximo da porta e terminando onde começa a captura da ação. Digamos que seu chão tenha vinte azulejos. Volte vinte dias no tempo e veja o total de mortes acumulados do primeiro dia até então, anote o dia e o número. Verifique os números, para cada dia, dos dezenove dias (de acordo com o seu número de azulejos) subsequentes, acabando no seu dia de hoje. Anote estes números em uma lista.

d) Materiais. Separe os seguintes materiais: feijões (você vai precisar de alguns quilos); um saco preto grande; um saco preto pequeno; dezenove sacos transparentes; dezenove xícaras rotuladas de dois a vinte. 

e) Contagem. Sente-se em uma cadeira confortável, você vai passar bastante tempo nela. Coloque no saco preto menor o número de feijões correspondente ao número que você anotou para o dia um, e que corresponde aos números acumulados desde que tudo começou até 20 dias atrás, conte de três em três. Amarre este saco e guarde no saco preto grande. Coloque na xícara número dois o número de feijões correspondente. Acredito que sejam cento e sessenta e sete. Creio que seja rápido. Como ficou sua xícara? (…) Décimo dia: quanto tempo você gastou? Décimo primeiro: você já se deu conta de que cada feijão corresponde a um corpo? (…) Décimo quinto dia: já pensou quantas horas levaria para fazer uma oração para cada um deles? Décimo sétimo dia: mais um recorde, a conta só sobe. Décimo oitavo: como está sua xícara? Décimo nono: ainda cabem os feijões? Vigésimo: você contou dez mil, seiscentos e vinte e sete feijões, organizados em sacos pretos e xícaras. Transfira cada xícara para um saco transparente individual, olhe bem para eles, unidades que se amalgamaram em porções, porções diárias de mortes. Que se tornarão os almoços dos seus próximos dias. Seus dedos cansaram, sua alma sangra. E você precisa continuar. Você está seguro, protegido na sua casa, que envolve seu iluminado corredor, seu corredor que representa este mundo esférico. Pandêmico. Sofrido e desigual, onde alguns protegem seu CNPJ e outros se esvaem em números sem ao menos ter tido direito a um CPF, terminando suas existências invisíveis amalgamados em números, enterrados em valas coletivas, o fundo do poço, a vala. A morte não escolhe a quem ataca, o direito ao cuidado sim. O bolso cheio garante UTIs distantes. O vazio, a longa fila. Onde o Estado se importa as coisas vão mal, onde não se importa vão ainda pior. Ou são escondidas. Continue sua tarefa, voltemos ao seu corredor. 

f) A captura de imagem. Enquadramento de câmera de segurança, presa ao teto no lado oposto à porta, aparecem no enquadramento a metade inferior da porta e os seus vinte azulejos, a porta centralizada na imagem, a perspectiva estreitando o corredor em direção à porta. A foto dinâmica de Wesely deve ter o mesmo enquadramento, é necessário que as duas capturas sejam realizadas na mesma ação. 

g) O memorial. Use uma roupa que não te destaque do cenário. Coloque todos os seus sacos no saco maior, este será seu fardo, deve ficar nas suas costas. Deve pesar um pouco, como deveria pesar nas costas de todos nós. Comece pelo vigésimo dia, o azulejo mais próximo da câmera, distribua, com distanciamento igual entre eles, seus setecentos e trinta feijões dentro do azulejo mais próximo à câmera. Se não couber direito e não houver muito espaço entre eles, é isso mesmo, são os corpos se empilhando, uma realidade dolorosa, comece a se acostumar. Fique de cócoras, continue preenchendo seus azulejos, cada azulejo um dia, cada dia menos feijões, o saco nas suas costas cada vez mais leve. Esse cansaço que se acumula, suas pernas que doem, são o fardo social cada vez mais pesado que estamos acumulando. Preenchidos os últimos cinco dias, vamos para o décimo quarto. O número de feijões para o décimo quarto azulejo é duzentos e noventa e quatro, vendo assim em retrocesso, como estava melhor. Cinco dias imensos os separam. Você continua. Faltando apenas dois azulejos, você se acocora em um e preenche o outro, são cento e treze feijões, seu trabalho está quase encerrado. A exaustão te preenche. Agora, você está no último azulejo, encolhido e acocorado, as costas contra a porta, a luz te destaca como um vulto, naquele corredor que agora parece bem mais longo do que você imaginava. Só lhe restou o espaço deste último azulejo, e um saco, o seu saco preto inicial. Dois mil, quinhentos e oitenta e quatro feijões, esparramados pelos seus pés, extravasando por todos os lados. Você olha para a câmera no lado oposto do corredor e não sabe como terminará. 

Bom almoço.

10 de maio de 2020, 17:00.

One thought on “10520<10627”
  1. Li este belíssimo texto ainda no berço. Era como o respiro de uma criança, um sopro de vida. Elaine, em meio, estava como muitos de nós, inquieta procurando decifrar o que vivíamos, ou melhores, o que estava devastando todos nós. Vidas que contam como humana e não como números. O negacionismo do desgoverno é a estupidez de seus apoiadores faziam com que tantas vidas fossem pelas valetas das ruas ou covas dos cemitérios como dos tempos das trincheiras. Elaine registra esse sentimento de fragilidade humana e deixa um recado para todos e todas nós: vidas importam sim, e as que foram jamais voltarão. São vidas que se foram deixando uma lacuna em seus familiares para sempre. Obrigado pela r compartilhar, Elaine. Escreva mais!

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