Minha mãe se diz não ser supersticiosa, mas quando se trata do número quatro, parece que voltamos para a Idade Média. E 2020 estar sendo o ano que é apenas comprova sua superstição. O número quatro é seu número de azar e, bem, se somarmos os algarismos que aparecem no número 2020, temos 4. E para adicionar um toque dramático ao ano que já estava pressuposto para ser ruim, tivemos uma pandemia global, alguns incêndios florestais, uma explosão de nitrato de amônio, uma derramamento de óleo em um paraíso natural, protestos anti-racistas, uma nuvem de gafanhoto, uma crise política e, enfim, acho que deu para entender.
E enquanto o mundo está (literalmente ou não) em chamas, nós nos vemos assistindo tudo de dentro de casa, e como vocês, adultos, gostam de falar, desejando se “encontrar para um chop´´com os amigos. Se fora de casa o mundo está em crise, dentro de casa o mundo está se balançando numa corda bamba, e dentro das nossas cabeças, o mundo se segura no fino fio da paciência.
Ou assim relatam muitos.
No início da pandemia, eu não acreditava que era possível, de um dia para o outro, parar um país inteiro. A ideia de que as escolas do mundo inteiro deixariam de ter aula presencial foi imaginável para mim, e a rapidez com a qual tudo aconteceu não me ajudou na hora de processar o que estava acontecendo. Não ir para a escola por motivos de segurança era algo que acontecia ou nos filmes de ficção ou nos livros de história. Mas não no aqui e no agora. E quando, de repente, a escola anunciou uma pause de duas semanas, e depois de duas semanas ainda não havia sinais de que a aula voltaria, percebi que sim, o mundo inteiro pode parar de um dia para o outro, e mesmo assim, o mundo nunca parou.
A pandemia e a quarentena deram um tapa na cara da tradição e decidiram nomear a criatividade como novo líder supremo. E em menos de duas semanas, descobrimos que até aula de piano é possível ter online. Então sim, as estradas ficaram vazias e as companhias de aviões faliram, mas ao mesmo tempo, os adultos descobriram a função de escolher o plano de fundo no Zoom, e tiveram que se adaptar àquilo que era natural para a geração mais nova: falar com uma câmera.
Depois de ter superado o choque da mudança repentina de rotina, eu me adaptei bem. O novo formato da escola trazia enormes vantagens: não estar ao lado de dezenas de adolescentes cuja companhia eu nunca desejei, não sofrer o estresse de provas, e organizer meu dia do jeito que eu, e apenas eu, achava melhor. De repente eu estava no controle de quando fazer o que deveria ser feito, e eu, como um boa virginiana, não poderia ter me dado melhor. A saudade dos amigos bateu apenas depois de algumas semanas.
Mas eu tinha passado o último ano fora do Brasil. Já estava acostumado a sentir falta dos meus amigos brasileiros, e meus amigos estrangeiros não iria conseguir ver com ou sem pandemia. Então parecia estar tudo em ordem.
Mas quanto mais o tempo passou, mais eu senti tudo aquilo que a pandemia me impedia de fazer. Veio a dor de não poder viajar e voltar para o lugar onde deixei meus melhores amigos, caiu a ficha de que fazer um terceiro furo na orelha era meramente um sonho, e bateu a saudade de comprar roupa nova. Mas essas dores eram superficiais, desejos bobos, poucos eram necessidade.
Na realidade, eu sabia que estava em uma posição privelegiada. Não só por não precisar me preocupar com dinheiro e oportunidades, mas por estar emocionalmente sã o suficiente para aguentar as mudanças que a pandemia trazia. Muitos dos meus amigos não possuem essa sanidade, e a quarentena tirou deles a chance de ficar sozinho e apreciar a calma longe dos familiares. E mesmo assim, de forma muito surpeendente para mim, vi em todos os meus amigos a capacidade deles de continuar. É inspirador, de certa forma, ver como alguém continua em pé enquanto uma multidão joga facas nele.
No final das contas, depois de quase seis meses de isolamento social, eu sei que eu aprendi. Não só a tricotar, a construir uma casa na árvore, a preparar novas receitas, a fazer faxina, a tocar ukulele, a cortar o cabelo de minha mãe, a dirigir carro, a diferenciar uma platanação de chuchu de uma de maracajú, ou a resolver o cubo mágico. Muito mais interessante do que isso (o que significa muito, você sabe como é incrível resolver o cubo mágico em menos de um minuto?), foi a aprender a ser e a fazer apesar de. A continuar fazendo o que sempre fiz apesar de não ser da forma que era antes. A ser eu mesma apesar de não saber muito bem o que isso significa, e descobrir que isso não importa. A rir apesar da saudade. A continuar vivendo, se adaptando e encontrando na patinha de um gato um motivo para ser feliz.
Que Texto lindo.